Passou um mês e pouco se sabe: a resposta para o grande apagão de abril pode estar nestes 3 minutos

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O Apagão Solar de Abril: A Teoria dos Três Minutos e da Margem de Erro

Já passaram novecentas e cinquenta e nove horas e quarenta minutos desde o apagão de 28 de Abril. Esse é precisamente o tempo que passou até que ficássemos a saber exatamente o mesmo que já se sabia: muito pouco. Ou, é como quem diz, quase nada.

Rede Europeia de Operadores de Sistemas de Transmissão de Electricidade (ENTSO-E), a Rede Eléctrica de Espanha (REE), a Comissão Nacional dos Mercados e da Concorrência (CNMC), o Instituto Nacional de Cibersegurança (INCIBE), o Ministério para a Transição Ecológica, o Conselho de Segurança Nacional, entre outros organismos, entraram de cabeça no assunto. Uma avalanche de peritagens, inspeções, simulações e relatórios preliminares. Mas, um mês depois, não há uma conclusão firme. E, sejamos honestos, já ninguém espera que ela apareça mas também ninguém espera que o caso se repita. O silêncio tornou-se a explicação oficial.

Sempre me ensinaram: se não consegues explicar um problema, então provavelmente não tens controlo sobre o sistema. Associar este ensinamento rural ao sofisticado princípio filosófico da Navalha de Occam que diz, basicamente, que “a explicação mais simples, entre várias hipóteses, é geralmente a correta”, levou-me a partilhar, em regime de exceção dado o silêncio ensurdecedor que vai reinando, uma das minhas hipóteses simplistas para o apagão Ibérico.

Quando não temos controlo sobre o sistema, não temos como evitar que o problema se repita. No entanto, o que é curioso neste caso é que o problema não voltou a acontecer. A estabilidade regressou à rede, o que nos leva a uma possibilidade: não encontraram a causa, mas encontraram uma solução provisória. Um penso rápido. Uma almofada no joelho do sistema. Não sabemos ainda o que o fez tropeçar, mas estamos a evitar o andar no mesmo passeio.

O que (não) causou o apagão

Convém esclarecer alguns pontos antes de avançar. As grandes centrais solares, as que funcionam como espinhas dorsais da produção renovável, não são as vilãs da história. Muito pelo contrário: são provavelmente o elemento mais disciplinado da família. Elas são previstas com um dia de antecedência, comunicam-se à rede, são validadas, e estão sujeitas a penalizações se falharem. A REE sabe com precisão razoável o que esperar delas.

Também não estamos perante um caso clássico de excesso de produção. A rede tem ferramentas de curtailment (limitação de injeção), tanto local como nacional e tanto instantânea como programada. Ou seja, a rede manda. Se houver produção a mais, o operador pode desligar o que for preciso. Há regras, hierarquias, prioridades — não é um faroeste elétrico.

Há aqui um senão. Quer por imposição de rede quer por participação no mercado de serviços, a margem de erro temporal pode ser demasiado grande face à margem de erro de produção. O curtailment é geralmente definido em intervalos de cinco minutos. Essa pode ser a diferença entre desligar unidades de produção às 12h35 e ter o sistema a colapsar às 12h32 simplesmente porque todos haviam utilizado as 12h35 que haviam sido utilizadas no dia anterior.

As 12h35 não é um acaso, é um pico. É o momento em que os sistemas solares produzem mais, naquele dia do ano e considerando a posição solar e a orientação dos painéis.

O excesso de renováveis em potência instalada ou em produção instantânea não representa, por si, um risco para a rede – nem para o consumidor – porque a rede tem como controlar esses sistemas. O excesso representa sim um risco para o promotor que pode não conseguir injetar a quantidade de energia necessária que permita obter rentabilidade do projeto.

Os únicos sistemas que a rede não consegue controlar nem consegue prever de forma pré-acordada, embora tenha algoritmos que analisam históricos e promovem medidas, são os sistemas de mini e micro-geração, ou seja, sistemas pequenos.

Então, se não foi excesso de produção, falta dela, nem sabotagem, nem um ciberataque confirmado, o que foi?

Uma teoria simples, mas plausível: o relógio solar

Aqui entra a minha proposta e, quando digo minha, digo minha e não de qualquer entidade que eu represente. Pode parecer simples demais para ser aceite à primeira, mas não é por isso menos digna de reflexão. Lembra-se do que aprendeu na escola sobre os dias crescerem na primavera? Pois bem: entre 27 e 28 de abril, o dia cresceu 3,1 minutos (dados astronómicos).

Pode parecer pouco. Pode até parecer irrelevante. Mas e se esse pequeno avanço do sol tiver tido impacto real na produção solar? E se alguns parques tivessem programado o seu desligamento com base num relógio que definiu as horas, mas que já não estava totalmente alinhado com o sol?

Imagine-se o seguinte cenário: um parque solar está programado para começar a cortar produção às 12h35, antecipando o pico de irradiância previsto para esse horário. Só que no dia 28, o pico real chegou às 12h32. São três minutos de diferença — que trouxeram consigo uma subida de irradiância de cerca de 20 W/m². Parece pouco? Não é.

Num sistema de 30 GW, como o espanhol, um aumento de apenas 2,5% representa 750 MW de energia extra a entrar na rede. E o problema é que a rede não tolera desvios superiores a 2% sem reação automática (limiares de frequência e segurança). Passar esse limiar pode disparar mecanismos de segurança que começam por tentar estabilizar… desligando produção. Esse desligar em cascata é, neste momento, uma das poucas coisas que sabemos que aconteceu, mesmo que não saibamos o porquê.

De repente, os parques que ainda estavam a injetar essa energia extra começaram a desligar-se em cascata, uns com comandos automáticos, outros por decisão da REE. Em segundos, passámos de sobreprodução para défice. De um excesso de energia para um buraco de 800 MW. E o que é mais grave: tudo isto em apenas quatro minutos. Foi o suficiente para criar um colapso de frequência, que é o pânico dos operadores. Quando a frequência da rede foge do intervalo normal (50 Hz ± 0,1 Hz), começam os cortes e os disparos automáticos.

Tudo poderia ter sido mitigado com interconexões robustas que permitissem balancear melhor o excesso e a falta do sistema elétrico, mas Espanha liga-se a França por uma interconexão que não suporta mais de 3% da produção espanhola (ver aqui), o que se pretende aumentar. A válvula de escape é pequena para tamanha pressão.

Porque é que esta teoria faz sentido, à falta de outra

Há quem possa achar esta teoria simplista. Eu acho-a elegante — precisamente por ser simples, mas não simplória. Explica demasiadas coisas de forma demasiado alinhada para ser ignorada. Senão vejamos:

1. Explica por que razão tantos parques se desligaram ao mesmo tempo. A maior parte estava programada para reduzir injeção uns minutos depois, tal como tinha acontecido no dia anterior — e apanhou o pico antes do esperado.

2. Explica o desvio entre previsão e realidade. As previsões meteorológicas são boas, mas não infalíveis. E 3 minutos fazem diferença num sistema tão sensível como este (previsão meteorológica solar).

3. Explica porque o problema não se repetiu. Desde então, a REE passou a aplicar curtailments mais conservadores — uma margem maior, um corte mais cedo-mudou de passeio mesmo sem saber porque tropeçou.

4. É verificável. Os dados de irradiância desse dia estão disponíveis. E mostram o aumento naquele intervalo. Mostram o avanço solar. Mostram a sequência (os dados solares são públicos)

A delicadeza de um sistema gigante

Talvez o mais surpreendente de tudo isto seja percebermos como é frágil um sistema tão grande. A rede elétrica é um organismo vivo, altamente coordenado, mas sem espaço para impulsos. Uma oscilação mínima, numa hora crítica, pode provocar um ataque epilético ao sistema inteiro que admite uma margem de erro menor do que algumas das variáveis que o comporta. Um sistema que depende do tamanho do erro de apenas uma das variáveis, é um sistema que passa a ter condições dependentes e não é um sistema estável. Um sistema ideal deverá acomodar como margem de erro total a soma dos erros das suas variáveis interligadas. Aprendemos isso no laboratório do liceu.

Não estamos a falar de falhas evidentes. Estamos a falar de pequenas margens que foram ignoradas. De um relógio solar que chegou mais cedo. De previsões que se mantiveram no papel. De automatismos que reagiram como deviam, mas em cadeia.

E é por isso que esta teoria, apesar de parecer mundana, faz tanto sentido. Não precisamos de um hacker russo. Não precisamos de uma “pane” nuclear. Às vezes, basta um erro de relógio num dia de primavera.

Margens de erro não são luxos

O mais trágico (e talvez mais pedagógico) deste apagão é que ele mostra que a margem de erro não é um luxo — é uma necessidade. Quando operamos perto do limite, tudo se torna mais frágil. E neste caso, a margem era demasiado curta para acomodar três minutos de sol a mais.

Desde então, a rede mudou o comportamento. Houve mais curtailments, mais cautela, menos confiança cega na previsibilidade. Talvez não saibam ainda o que aconteceu — mas já perceberam o que pode voltar a acontecer se não fizerem nada.

Com esse comportamento, a rede elétrica percebeu que o apagão foi inevitável, mas que não é inevitável impedir novos apagões. O sistema elétrico espanhol está a trabalhar demasiadamente no limite e não há culpados nem no solar nem no eólico nem no ciclo combinado nem no nuclear nem no hídrico. A culpa é mesmo das previsões, porque tudo o que se passa hoje na rede foi planeado ontem com o que se previu que iria acontecer hoje. A cada previsão acompanha uma margem de erro, e a margem de erro está, aparentemente, abaixo da almofada que lhe foi posta.

Disse-o neste artigo, aqui na CNN Portugal, e repito aqui que a rede é gerida por pessoas de uma competência fenomenal e que, a esse nível, estamos muito bem entregues. Quando reduzimos o erro ao mínimo, significa também que temos bons previsores, grande confiança, e menos almofadas. Custou-nos aquele dia, mas beneficiámos muito nos outros milhares de dias em que o operador não teve medo das suas previsões.

Se tudo tivesse acontecido cinco minutos depois, nada teria acontecido porque tudo o que se tinha previsto no dia anterior, teria, eventualmente acontecido com cinco minutos de adiantamento. A explicação pelo relógio solar pode não ser a única e tenho consciência de que é uma teoria arrojada e simplificada para um sector cheio de especialistas onde me incluo, mas, na falta de relatório mais detalhado parece-me, ironicamente, a mais plausível e que me apraz usar para desafiar.

Nota: Este artigo de opinião, tal como outros que já escrevi, representa uma posição pessoal minha que não vincula nem representa a opinião de entidades que represento. Os espaços de opinião que preencho na CNN Portugal, e no qual evito escrever sobre energia, são espaços meramente de opinião pessoal que visam contribuir para novos prismas de visão e para uma mais abrangente discussão pública.

Artigo publicado na CNN. Veja aqui

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Bernardo Mota Veiga

Bernardo Mota veigaStrategicist

*língua original deste artigo: Português

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