Lição n. 2 | Orçamento Flexível: deixe de lutar contra o seu dinheiro

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GUIA PARA USAR O DINHEIRO A SEU FAVOR | O medo do dinheiro existe: ele vê-se na ansiedade ao abrir um extrato bancário, na vergonha em admitir que se gastou demasiado ou na culpa de não se conseguir poupar. Mas não ande à deriva emocional. Afinal, o orçamento deve ser um mapa para a felicidade, não uma prisão. Eis como

O dilema do orçamento rígido

Conheço pessoas que têm uma folha de Excel onde antecipam matematicamente todos os custos que prevêem para o seu mês. Também conheço quem se limita a registar cada gasto a posteriori, depois de gastar e quando já nada há a fazer. Há muitas formas de gerir o orçamento, mas entre estes dois grupos, há uma diferença curiosa: quem planeia tudo de antemão vive, no geral, com orçamentos mais apertados. Quem se limita a registar o que gasta vive mais desafogado ao ponto de poder, eventualmente, ter mais capacidade de resposta para uma eventual surpresa.

O mais surpreendente é que o segundo grupo não gasta necessariamente mais do que o primeiro. E porquê? Porque ambos fazem o básico da literacia financeira: assumem as suas despesas de forma consciente. Um antecipa no início do mês, o outro sabe, no mês seguinte, o preço de cada uma das “más” decisões. Registar os gastos — seja antes, durante ou depois — molda o nosso critério de decisão e a interpretação de valor que cada despesa representa.

Um detergente de marca premium pode ser um luxo para uns mas uma necessidade incontornável para outros, e isso não tem a ver com o tamanho da carteira, mas com o que valorizamos verdadeiramente. O que nos faz felizes e alimenta o nosso propósito. Quando listamos as nossas despesas, ganhamos consciência. Se o fizermos de forma antecipada, podemos evitar compras impulsivas. Se o fizermos depois, o mal está feito, mas dificilmente voltaremos a repetir o erro. Como escrevi no artigo anterior, o importante é ter uma perceção clara das despesas que nos trazem valor, pois é isso que nos aproxima da satisfação pessoal que definimos como riqueza.

A psicologia por detrás do dinheiro

O medo do dinheiro é real. A ansiedade de abrir um extrato bancário, a vergonha de admitir que se gastou demasiado ou a culpa de não se conseguir poupar são alguns dos traumas do dinheiro e da falta dele. Para muitas pessoas, um orçamento rígido é uma forma de tentar controlar este medo, uma espécie de prisão auto-imposta para garantir que não se desvia do caminho. Mas esta abordagem, em vez de libertar, aprisiona e robotiza. Tirando os controladores patológicos, esta abordagem afasta as pessoas de viver a vida que querem viver.

O dinheiro mal gasto é, na maioria das vezes, o reflexo de uma busca por satisfação irracional. É a carteira de marca que compras para impressionar os outros, o carro de luxo que faz sentir poderoso por umas semanas, mas nos deixa com a corda na garganta. São compras que geram uma satisfação efémera, um “açúcar para o ego” que rapidamente se desvanece, deixando para trás a dívida emocional e financeira.

Por outro lado, o dinheiro bem gasto é aquele que está alinhado com os teus valores, com o que te faz genuinamente feliz. Se o teu valor é a família, um fim de semana em Tróia, por mais caro que seja, é um investimento. Se o teu valor é o conhecimento, um curso ou um livro é um bem inegociável. A satisfação é duradoura e não se desvanece no momento em que a compra é feita.

Note-se que não estou a dizer que a tal carteira de marca é uma má compra. Pode até ser a melhor compra, assim ela traga todos os valores intangíveis associados à mesma e não acabe simplesmente num armário envolta em feltro e à espera do próximo casamento. Não tenho nada contra aquele ou aquela que compra um carro bom e come latas de atum e vive numa casa onde pinga. Se o carro representa efetivamente parte do seu objetivo de vida, então fez bem em optar pelo carro. A vida é para se viver e o que eu defendo aqui é que cada um defina de facto de que forma cada bem que compra alimenta o seu propósito, os seus objetivos, os seus valores.

O risco de viver “às cegas”

Há quem consiga gerir as despesas de forma empírica, ajustando os gastos diários ao tempo que resta até ao final do mês. Funciona, sim, mas esta abordagem leva a uma sensação permanente de que nada chega, gerando frustração. Quem vive sem olhar para os extratos e sem verbalizar os seus gastos vive numa montanha-russa emocional em que cada gasto coexiste com o prazer e a frustração.

Dou um exemplo: cheguei ao início do mês e fui a um restaurante espetacular, talvez acima do meu orçamento. Por causa disso, não consegui ir a mais nenhum restaurante durante esse mês e tive de fazer contas ao cêntimo no supermercado a comprar latas de atum nos dias em que me apetecia barriga de atum fresca. A questão é: compensou aquela hora e meia de prazer face a toda a frustração e privação do resto do mês? Se compensou, tudo bem, se não compensou, foi apenas um ato de autoflagelação!

É por isso que eu digo que quem regista ou registou os gastos sabe, antecipadamente, o impacto que esse restaurante terá no resto do mês. Não anda à deriva emocional. Se a experiência gastronómica for um valor inegociável, essa pessoa fará o corte noutros lados. Irá sentir-se realizada com a escolha, não se arrependerá e, por isso, não verá o resto do mês de forma negativa ainda que coma as tais latas de atum. Pelo contrário, quem foi impulsivo, viverá um resto de mês terrível, perderá a experiência positiva e a considerará um erro. Como diz o ditado, quem corre por gosto não se cansa. Na literacia financeira, ter a certeza do valor das nossas despesas é um dos pilares para uma vida financeira saudável.

As finanças não nos podem robotizar

Voltando aos dois tipos de pessoa, a segunda forma — a de registar os gastos depois — é a que, quanto a mim, nos mantém mais ligados à vida.

Definir um orçamento completamente fechado todos os meses leva-nos a uma robotização que limita a nossa capacidade de desfrutar de todas as surpresas. A segunda forma obriga-nos a estar ativos e conscientes, enquanto a primeira rouba-nos a liberdade e prende-nos a um orçamento que pode não nos estar a deixar viver. Ou seja, a consciência do gasto permite-nos criar a nossa disciplina de satisfação e passaremos a decidir em automático ao mesmo tempo que aceitamos e vivemos a vida que temos com espontaneidade.

Se me recomendassem um modelo, eu recomendaria uma solução híbrida entre os dois exemplos na abertura do artigo: o estilo Diretor Financeiro, de ser responsável mas flexível. Mal recebemos o salário, retiramos o valor das despesas fixas e ficamos livres para gerir o resto. Todos temos despesas fixas (renda, água, internet, colégio) e variáveis (refeições fora, cinema, compras). As fixas são aquelas que não se alteram; as variáveis são as que podemos escolher ter… ou não.

Desta feita, apenas temos de registar aquilo que mensalmente poderemos alterar. As despesas fixas não se alteram ao longo do mês pelo que as despesas fixas não são verdadeiramente negociáveis nem estão disponíveis para o livre arbítrio. As variáveis sim. As despesas com supermercado, por exemplo, estão numa zona cinzenta já que temos inúmeras opções para nos alimentarmos. Há o valor mínimo para a sobrevivência (o arroz carolino) e depois há tudo o que podemos abdicar (a diferença para o arroz basmati). A despesa fixa é portanto o preço do arroz mais barato que esteja disponível para comer, a despesa variável é a diferença para uma versão “melhorada” — mais cara, portanto. Mas, atenção: se o arroz basmati for um valor inegociável, então ele deixa de ser uma despesa variável e passa a ser uma despesa fixa! A sua vida, os seus valores.

A Regra dos 70% e o espaço para respirar

Para aplicarmos toda a teoria, e porque temos uma parte que representa liberdade e outra que representa obrigação, a grande essência está na forma como definimos as nossas despesas fixas e as variáveis. É isso que vai impactar na forma como vivemos cada mês. Para mim, a grande limitação vem quando as despesas fixas ultrapassam 70% do orçamento. Quando isso acontece, o orçamento não nos dá margem, e caímos num estado de robotização crónica. Para a maioria das pessoas, os 30% restantes são a margem de manobra para as despesas variáveis, imprevistos e poupança. Quando essa margem encolhe, a vida encolhe com ela.

Quando as despesas fixas consomem todo o salário, fica tão pouco — ou nada — para as despesas variáveis que a vida se torna uma série de sacrifícios contínuos. Ou todos os nossos sonhos estão dentro das despesas fixas ou ficaremos sem espaço para sonhar. É a diferença entre ter que inventar uma desculpa para não ir ao jantar com os amigos porque o dinheiro não chega, ou poder fazer uma escolha consciente: “Sim, vou ao jantar, mas esta semana vou cozinhar em casa para compensar”. A rigidez não nos protege; ela força-nos a mentir a nós próprios e aos outros sobre a nossa liberdade. Essa flexibilidade é o que faz um mês ser diferente do outro e dá variabilidade à vida. É a diferença entre sentirmos que o dinheiro nos domina ou que o dinheiro está ao nosso serviço.

O orçamento deve ser um mapa para a felicidade, não uma prisão. O nosso dinheiro deve ser um facilitador da vida, e não um obstáculo. O orçamento deve ser um reflexo de quem somos e do que queremos ser, não uma lista de proibições. Porque, no fundo, ter as finanças em ordem não é sobre não gastar, é sobre gastar bem e ter a liberdade de dizer “sim” às coisas que realmente importam.

Como já referi no primeiro artigo desta série, parto do princípio de que o orçamento pessoal permite alguma elasticidade — ou até margem para escolhas. Mas é importante reconhecer que, infelizmente, há muitas pessoas em Portugal para quem essa liberdade é ilusória. Vivem com orçamentos onde o fixo e o variável se confundem não por desorganização, mas porque a vida mal permite prever o dia seguinte. As necessidades básicas não são escolha, e a gestão financeira, para essas pessoas, é um exercício diário de sobrevivência.

Passos para uma vida financeira consciente

“Não se trata de ter mais, mas de precisar de menos — e compreender porquê.”

1. Orçamente com base nos nossos valores, não apenas nas despesas. Em vez de partirmos de números, partamos de intenções. Se valorizamos tempo livre, saúde mental ou educação, devemos refletir isso na forma como organizamos os nossos recursos. Exemplo prático: Se prioritizamos o bem-estar emocional, talvez faça mais sentido investir numa atividade que nos equilibra do que adquirir mais um objeto que ficará esquecido numa gaveta.

2. Aplique a “Regra das 24 horas”. Antes de fazermos uma compra não essencial:

  • esperemos 24 horas
  • perguntemo-nos se o desejo permanece
  • questionemos: “Isto é alimento para a alma ou apenas açúcar para o ego?” Este simples gesto pode evitar impulsos e aumentar a coerência nas nossas escolhas.

3. Reveja os seus gastos todos os meses. Crie o hábito de olhar para o que gasta e classifique:

  • aquilo que lhe acrescentou valor
  • o que foi puramente impulsivo
  • o que o deixou indiferente. 

Esta análise regular é um espelho da nossa consciência financeira — e permite fazer pequenos ajustes com grandes resultados.

4. Crie pequenos rituais de gratidão pelo que já tem. Pode treinar o olhar para a abundância já presente:

  • um café saboreado com tempo
  • uma refeição simples, junto de quem gosta
  • um objeto com história, que ainda o acompanha. 

A prática da gratidão torna-nos mais conscientes — e essa consciência é um passo firme em direção à liberdade financeira.

O nosso “Jardim Financeiro”

A literacia financeira não é uma prisão de números e proibições. É como um jardim. As despesas fixas são as raízes e a estrutura que garantem a estabilidade do solo — a renda, os impostos, os custos essenciais. As despesas variáveis são as sementes que escolhemos semear e as flores que colheremos: o jantar com os amigos, a viagem, o livro que inspira.

O nosso papel não é prender as raízes, mas ser o jardineiro que cuida do que é importante, garantindo que o nosso jardim financeiro floresce de forma saudável, bonita e, acima de tudo, alinhada com a nossa própria definição de felicidade. Não devemos deixar que o dinheiro nos defina. Devemos definir nós a nossa vida, e o nosso dinheiro seguirá o nosso caminho.

Artigo publicado na CNN. Veja aqui

Pode ler todos os artigos do “Guia para usar o dinheiro a seu favor” aqui na CNN Portugal

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Bernardo Mota Veiga

Bernardo Mota veigaStrategicist

*língua original deste artigo: Português

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