Saímos ao final da manhã do Norte no novo carro elétrico, com o Google a apontar 515 quilómetros e 4h46 até Loulé, no Algarve. Embora a autonomia prometida fosse de 600 quilómetros, o mostrador indicava 430 após o último carregamento. Com apenas 85 quilómetros de autonomia de diferença para o destino, a necessidade de uma paragem era inevitável. Uma paragem rápida, de meia hora, o tempo de um café e de um lanche rápido na autoestrada. Pensava eu.
Optámos por evitar a A1. Era meio da manhã quando saímos, o carro ainda tinha autonomia, e esses carregadores estariam certamente com mais procura. A aplicação do telemóvel confirmou as nossas suspeitas: indisponibilidade a cada passagem nos postos da A1 enquanto o carro ia ajustando os consumos. Em autoestrada o carro consome bastante mais. Saídos da A1 em Santarém, o “stress dos elétricos” começou a instalar-se. Embora pudesse andar mais, decidi parar antes de nos aventurarmos nas autoestradas diretas para o Algarve.
A aplicação dava disponibilidade num carregador de uma cadeia de fast-food (nome fictício: Borga Queen). O corpo abasteceu-se de calorias, o carro não: o carregador estava inoperacional, apesar de a aplicação MiaU (nome fictício) o dar como funcional.
Pesquisámos por carregadores nas proximidades e encontrámos vários num hipermercado (nome fictício: Contingente). Tudo livre, mas para carregar, a aplicação exigia a instalação da App Contingente, o que recusei. Afinal, se ninguém me obriga a ter a aplicação da bomba de gasolina para abastecer, porque hão de o fazer nos eléctricos?
A próxima paragem em Santarém foi num supermercado (nome fictício: Lido), onde o carregador estava fora de serviço. A poucos metros, outro supermercado (nome fictício: Ali) tinha dois carregadores com quatro fichas, e apenas três estavam ocupadas. Finalmente, consegui carregar. Aprendi à força que a capacidade do carregador (que anunciava 120 kW) se mede para um uso único: se lá estiver outro carro a carregar, a potência divide-se por dois.
Passaram-se cerca de duas horas desde que saímos da rota para carregar até que o carro ficou outra vez com a bateria cheia de kW até ao topo. Até ao Algarve, fosse na A13 ou na A2, os carregadores estavam todos cheios, o que confirmou que a decisão de parar mais cedo tinha sido a acertada.
A desilusão dos engenheiros
Como os automóveis a gasolina têm os seus depósitos, os carros elétricos têm o ponto de carregamento em sítios diferentes. No meu carro, comprido e com a ficha na traseira, é impossível estacionar de frente para o carregador, tenho de o fazer sempre de traseira. Suponho que isso acontece na maior parte dos carros, e é por isso que não entendo como a maioria dos postos está instalada em estacionamentos em espinha, que implicam uma entrada directa de frente no lugar, mesmo nas bombas da autoestrada onde há espaço mais do que suficiente para alternativas. Estacionar de traseira em espinha numa via de sentido único é, no fundo, andar em contramão, além da complexidade da manobra e da figureta que fazemos.
Desiludiram-me os engenheiros que acharam que era boa ideia desenhar postos com lugares em espinha ou até mesmo paralelos ao posto. Não há dúvida de que a melhor forma é ter os lugares de estacionamento perpendiculares ao posto, permitindo que o utilizador coloque o carro de frente ou de traseira e o cabo chegue a qualquer ponto onde esteja a entrada para o carregador.
Chegada ao Algarve – e mais desafios
Cheguei ao Algarve depois de horas a comentar, frustrado, a questão dos lugares em espinha, mas ainda assim pronto para uma semana de descanso. A primeira coisa que quis fazer foi carregar o carro a 100% para aliviar o stress. No dia seguinte, num supermercado (nome fictício: Lido), que a aplicação MiaU dizia ser rápido e barato, o cartão bloqueou após três tentativas falhadas por anomalias no carregador. Era sábado, e a linha de apoio ao cliente só funcionava nos dias úteis. Dá para imaginar o quanto o meu stress (não) aliviou.
Fui a uma bomba (nome fictício: Glup) tentar usar o cartão uma última vez para o caso de ter sido apenas uma falha no posto da Lido, sem sucesso. Recorri à aplicação MiaU e consegui fazer um carregamento pré-pago nesta mesma aplicação. Estimo que paguei cerca de 20 euros por 30 kW, quase o dobro do custo de um abastecimento equivalente de gasolina. É um facto que Vilamoura está bem servida de postos, mas o difícil é estarem vagos – muitos condutores de TVDE ocupam os postos – e perceber os preços que praticam: há um valor fixo, um valor variável, um valor de energia, um valor de utilização mais taxas,… Uma autêntica confusão, pois os postos não apresentam o total no fim do carregamento. Fiquei sem perceber qual das componentes paga IVA ou qual está isenta. Nada.
Se na gasolina há diferenças de 5% de um posto para outro, nos eléctricos essa diferença pode chegar quase aos 300%. Convém estar minimamente atento.
Resumindo: Carregar o carro é uma autentica caixa negra.
A realidade da mobilidade elétrica
Portugal tem apostado na mobilidade elétrica, mas a rede de carregamento, com cerca de 5500 pontos públicos e cerca de 12000 tomadas de carregamento em 2025 (abaixo da média europeia), ainda apresenta lacunas que desafiam os condutores. A minha experiência é apenas uma entre milhares que mostram que há muito por fazer — e por corrigir.
Não entendo, por exemplo, como uma conceituada marca de hipermercados utiliza o posto de carregamento para fidelização de clientes em vez de o usar para aumentar a disponibilidade de carregadores, algo tão crucial para a mobilidade elétrica e descarbonização e algo tão colaborativo para o bem comum. Imagine-se o que seria se as bombas de gasolina da Glup só deixassem abastecer quem tem o cartão Glup. Fica a nota para os seus responsáveis de ESG porque estão a perder uma boa oportunidade para impulsionar sustentabilidade em vez de a vender. Uma coisa é fazer descontos aos clientes, outra é ter os postos vagos, e deixar os consumidores com carros eléctricos à sua sorte num país com postos insuficientes.
Não faz sentido que as bombas de autoestrada tenham apenas um carregador – geralmente com três fichas mas em que apenas uma, ou duas, nos servem. O governo deveria incentivar a instalação de mais postos nas estradas com menos movimento, talvez através de parcerias público-privadas ou subsídios para empresas que ampliem a rede de carregadores. Uma regulamentação que obrigue a uniformização das aplicações de carregamento e a exibição clara do custo total em cada posto também seria essencial.
É natural que os engenheiros se dediquem a redesenhar os locais de estacionamento nos postos de carregamento, optando por layouts perpendiculares que acomodem todos os modelos de veículos elétricos.
Os postos devem apresentar o total pago de imediato e em total transparência e talvez deva haver limites para preços. Ninguém quer saber o preço do kW ou da taxa; as pessoas querem saber quanto pagaram para andar X quilómetros. Uma norma que exija a exibição do custo final, como nas bombas de gasolina, traria mais confiança aos consumidores.
Veredito (com uma pitada de humor)
Os carros elétricos oferecem uma forma de viajar muito confortável, especialmente em percursos superiores a 300 quilómetros, e apenas até ao momento de carregar. Não os trocaria por nada. Mas a infraestrutura ainda está longe de acompanhar o entusiasmo dos condutores e os atuais cerca de 300.000 veículos de ligar à tomada.
No final, a minha viagem serviu para provar que a mobilidade elétrica é como uma remodelação em casa: começa-se com o empolgamento de ter algo novo e moderno, mas rapidamente se descobrem paredes por rebocar, canalizações que não funcionam e custos imprevistos que nos fazem questionar tudo. No entanto, quando tudo está no sítio e a obra fica pronta, a casa é a coisa mais confortável do mundo. E, tal como na remodelação, é melhor não fazer as contas às dificuldades e ao processo — até porque, se o fizermos, talvez optemos por ficar a viver na rua.
Quanto à viagem de regresso… vou poupar o leitor a essa segunda odisseia. O ponto alto foi ter reencontrado um casal amigo precisamente num posto de carregamento na A13. Entre cabos e kW , houve tempo para conversa, piadas acerca dos carros eléctricos e aquele tipo de coincidência que acontece quando menos se espera. Afinal, nem todos os carregadores estão lá só para alimentar baterias — alguns também recarregam amizades.
Artigo publicado na CNN. Veja aqui