Nota: este artigo não faz recomendações de investimento em ações, pretende sim valorizar as análises estratégicas nos mercados de investimento.
Os mercados nos últimos dias têm sido uma espécie de chuva de facas de diferentes formas e feitios. O investidor tem a oportunidade de escolher entre levar com um cutelo, uma faca de laminar presunto, uma faca de serrilha e mais umas quantas versões mais ou menos afiadas.
Não há estratégia sem uma correta leitura dos mercados, mas uma boa estratégia permite retirar proveito de qualquer oportunidade.
A Hertz foi um autêntico cutelo durante quase um ano, mas foi quando os mercados inverteram a sua direção que os títulos da Hertz se transformaram numa inofensiva faca de cortar manteiga. Sem bico nem lâmina, a Hertz era a melhor faca com que se poderia ser atingido e, sendo à hora do lanche, até poderia ser útil para barrar a torrada.
Uma correta leitura dos mercados pode permitir ao investidor abrigar-se da “chuva” mas também pode permitir ao investidor agarrar oportunidades interessantes e mesmo únicas, mesmo que circunstanciais.
A Hertz foi um exemplo disso mesmo e trago-o aqui não pela cotação da ação em si, mas pelo racional que por vezes leva uma ação a divergir em comportamento face a todas as outras.
Que os mercados têm estado a cair drasticamente devido à incerteza das tarifas, penso que já todos o assumimos, mas escolher os ganhadores improváveis (ou não) desse caótico novo status quo é o que faz a diferença entre os investidores e os apostadores.
As tarifas anunciadas nos EUA terão, naturalmente impacto na Hertz, como terão em todas as empresas que necessitem de comprar carros. Com elas, os carros não americanos irão inevitavelmente subir de preço, o que levará as empresas que exploram frotas a uma de duas opções: manter as margens, aumentando os preços do aluguer para compensar o aumento do custo das viaturas, ou manter os preços e, por conseguinte, baixar a sua margem. Em princípio, as tarifas nunca seriam boas para este tipo de empresas, certo? Errado!
A Hertz tem mais de 400.000 veículos nos Estados Unidos – mais cerca de 100.000 noutros países. Esta frota passa pela Hertz por um período médio inferior a 12 meses ou cerca de 15.000 km, momento em que a Hertz vende esses veículos para adquirir novos. O critério de rotatividade dos carros das frotas de aluguer é um dos mais sensíveis na gestão de empresas como a Hertz.
Vender um veículo demasiado cedo faz perder valor no aluguer e vender um veículo demasiado tarde faz perder valor na depreciação.
Em maio de 2020, a Hertz entrou no regime de proteção – que nos Estados Unidos se Chapter 11 e cá seria como um pedido de insolvência -, em grande parte devido aos efeitos económicos colaterais da Covid, que levaram à redução drástica na mobilidade nos americanos.
Esta quase falência da Hertz durou até Junho de 2021, altura em que conseguiu duas coisas fantásticas. A primeira foi a captação de um novo investidor, mas a mais surpreendente foi a segunda: o aumento inesperado do valor dos carros.
Se ainda não chegou lá, vai ver que chegarem os ao momento dejá-vu.
Não me vou debruçar muito sobre as outras razões, além da Covid, que levaram a Hertz a uns centímetros do precipício, mas vou tentar explicar como a Hertz evitou a queda quase certa.
Durante a Covid, houve uma enorme disrupção da cadeia de valor da indústria automóvel. As fábricas estavam fechadas, o trânsito de pessoas e mercadorias internacionais estava intermitente e grande parte da prioridade foi dada às pessoas e aos bens essenciais onde os veículos não se inseriam.
Numa primeira fase, os veículos avolumavam-se nos armazéns sem compradores, as empresas de aluguer cancelavam as suas ordens, as empresas de leasing recebiam carros devolvidos dos clientes que, com as pessoas retidas em casa, já não necessitavam deles. Esta foi a fase que rebentou com a Hertz.
Depois veio a segunda fase. Acabados os confinamentos, tudo começou a voltar ao normal, mas a cadeia de valor mantinha fragilidades porque cada componente dos veículos vem de um determinado local, e nem todos os locais desconfinaram ao mesmo tempo. Ou seja, tudo estava de facto a compor-se, mas faltavam certas componentes para incorporar nos veículos novos. Uma delas eram os chips necessários aos sensores dos carros!
Eu próprio comprei carro na altura e tive que abdicar de alguns sensores, que nesse período estavam completamente esgotados, e ainda assim esperei seis meses pelo carro.
O que é que isto tem a ver com a recuperação da Hertz? Tudo!
Ora, se por um lado a desvalorização dos carros por falta de uso levou a Hertz à beira da bancarrota, também foi a paragem generalizada das fábricas de alguns países que levaram a Hertz a ganhar uma fortuna na venda de carros da sua frota num momento em que havia discrepâncias enormes do lado da oferta e da procura.
Moral da história, a Hertz viu a sua frota valorizar enormemente e aproveitou para vender carros a um valor anteriormente impensável. Salvou-se a ela e, através de uma parceria entre ambas, ainda deu um empurrão valente à Carvana Co, uma empresa de venda online de carros usados. As ações da Hertz recuperaram de uma forma meteórica e a bancarrota saiu do horizonte.
A história parece repetir-se
Regressada dos tempos de aperto e com dinheiro fresco, em 2021 a Hertz decidiu fazer uma aposta radical ao eletrificar a frota. Para tal comprou 100.000 Teslas de uma assentada, o que veio a ser considerado um enorme erro estratégico. Os veículos elétricos têm uma depreciação diferente dos modelos convencionais e a Hertz veio a verificar que o seu modelo de ter os carros por um curto período de tempo não batia certo com a depreciação dos elétricos. O resultado foram perdas abismais e a tomada de decisão de vender umas valentes dezenas de milhares desses mesmos carros.
A Hertz voltou a secar e muitos já contavam com o regresso à desgraça até que…Trump anuncia as tarifas!
Resumindo um pouco o universo Hertz:
a Hertz tinha, antes do anúncio das tarifas, uma capitalização bolsista de cerca de mil milhões de dólares no final de 2024, depois de uma perda nesse ano de 2,9 mil milhões de dólares devido precisamente à depreciação dos veículos elétricos.
Quando Donald Trump anuncia as tarifas mínimas de 10% – e na maior parte dos casos acima dos 20% – para os países que exportam veículos para os EUA – no caso da China está próximo dos 150% -, ficou claro uma coisa: os carros vão subir de preço!
Não é necessário fazer muitas contas. A margem média do fabricante anda nos 7% e, portanto, é impossível serem os fabricantes a absorver essa margem. Os preços dos carros terão obrigatoriamente que subir pelo menos até que os EUA consigam produzir carros localmente aos preços pré-tarifas.
É aqui que entra a Hertz. Com 400.000 de veículos no seu balanço e com o valor dos mesmos a aumentar, a Hertz vai ganhar uma fortuna no curto prazo, ainda que venha a custar-lhe outra fortuna no longo prazo.
Mas os investidores da Hertz estavam tão pessimistas que já pouco acreditavam na própria solvabilidade da empresa pelo que esta “lufada” de valor pode ser a diferença entre afundar ou ficar à tona pelo menos durante uns tempos.
Estima-se que, em média, os carros usados possam valer mais cinco mil euros devido às tarifas. Isto representa para a Hertz uma valorização de um dia para o outro de cerca de dois mil milhões de dólares, ou seja, duas vezes a sua própria capitalização em bolsa.
Ora, as ações da Hertz reagiram em plena conformidade e foi precisamente nos dias menos bons na bolsa que decidiram desviar-se do caminho da “manada” e, nas últimas quatro sessões, subiram 56% no dia 16 de Abril, 44% no dia seguinte, perderam 5% no seguinte e ontem estavam a subir 16%.
A Hertz transformou-se numa borboleta esplendorosa para os investidores que analisaram convenientemente o mercado e perceberam que havia vários fatores que poderiam ser favoráveis à Hertz. O preço dos carros e um gigantesco sentimento negativo em torno da ação – estava cerca de 40% do seu capital em posição de short – espoletou o contra-pé que favoreceu a cotação.
Eu próprio andei por lá, mas não depositei esperanças em que pudesse ser um efeito de longo prazo, pelo que neste momento já não tenho qualquer posição na Hertz. Diz-me a parca experiência que, quando uma ação tem este comportamento, gera na sua gestão apetite para emitir ações novas, aproveitar os valores altos, e capitalizar a empresa.
Uma boa estratégia funciona mesmo quando tudo parece partido.
Nota: este artigo não faz recomendações de investimento representando apenas uma estratégia aplicada uma ação que, a seu tempo, pode ter sido ganhadora mas não replicável.
Artigo de opinião publicando na CNN. Veja aqui
Nota Importante para Leitores de Strategicist.com:
Este artigo, publicado em Strategicist.com, foca-se na análise estratégica e na dinâmica de mercado nos setores da criptomoeda e da estratégia corporativa. O nosso foco não é o valor das ações, mas sim a estratégia das empresas.
Aviso:
Este artigo tem fins meramente informativos e especulativos e não constitui aconselhamento financeiro nem uma recomendação para comprar, vender ou manter quaisquer valores mobiliários. As opiniões expressas baseiam-se em observações e análises de mercado, que estão inerentemente sujeitas a alterações e interpretações. Investir em criptomoedas e empresas relacionadas acarreta riscos significativos, incluindo a potencial perda do capital investido. Realize sempre a sua própria investigação aprofundada e consulte um profissional financeiro qualificado antes de tomar qualquer decisão de investimento.