A ironia é desconcertante: em 2023, Portugal tinha cerca de 10.000 hectares ocupados por instalações de energia renovável, segundo dados estimativos da Direção Geral da Energia e Geologia (DGEG). Nesse mesmo ano, arderam entre 33.000 e 35.000 hectares de floresta e mato, conforme os relatórios do Instituto da Conservação da Natureza (ICNF) até setembro. Em 2022, também segundo ICNF e Agência Portuguesas do Ambiente (APA), tinham ardido cerca de 110.000 hectares.
Os números não parecem seguir uma tendência de melhoria. Em 2024, o número disparou dramaticamente: entre 15 e 20 de setembro, mais de 135.000 hectares foram consumidos pelo fogo — um dos piores episódios de sempre, segundo a CNN Portugal.
Incêndios são, na prática, fontes de libertação de carbono acumulado nas florestas. Ainda que pouco se fale nisso, são uma das maiores fontes de emissão para a atmosfera. Estimativas do programa Copernicus Atmosphere Monitoring Service apontam para 1,9 megatoneladas de carbono em setembro de 2024 — o equivalente a cerca de 7 Mt de CO₂ — um recorde desde que há registos disponíveis.
Portugal é, de facto, líder internacional na transição energética, com cerca de 61% da eletricidade gerada por fontes renováveis em 2023, conforme DGEG e REN. Mas este desempenho fica afetado quando incluímos no cálculo as emissões causadas pelos incêndios florestais, como bem refere o Enerdata
Estarão as duas áreas mesmo separadas? Ou poderão os projetos renováveis contribuir ativamente para reduzir emissões causadas por incêndios florestais?
A Floresta não pode ser um dano colateral da Transição Energética
É aqui que surge uma oportunidade estratégica — desde que planeada com tática e ambição: transformar parques solares e eólicos em aliados ativos da proteção florestal.
Estes projetos de produção de energia renovável contam com infraestruturas sólidas: comunicações, monitorização remota, segurança perimetral e manutenção regular. Por isso, seria tecnicamente e economicamente viável equipá-los com sistemas de vigilância florestal óptica e térmica, integrados com a Proteção Civil através do sistema SIRESP.
A proposta é clara: promotores de energias renováveis devem assumir corresponsabilidade na cooperação pela vigilância das florestas próximas dos locais onde se instalam. E, arrisco dizer, os mesmos aceitariam essa colaboração de bom grado, porque essencialmente estamos a falar de empresas “descarbonizadoras”.
A própria localização dessas infraestruturas, quase ideal, reforça esta ideia:
- Os parques eólicos situam-se em pontos elevados, com ampla visibilidade
- Os parques solares estão predominantemente em encostas voltadas a sul e em zonas abertas, com grande alcance de visão
Não será difícil criar uma rede de monitorização criada com TODOS os promotores, articulada com o Estado, permitiria vigiar uma parte significativa do território, atuando como um instrumento eficaz na prevenção de incêndios. A escala faria toda a diferença.
Uma analogia: torres de vigia do século XXI
Durante anos, Portugal contou com torres de vigia manuais, ocupadas por jovens que nos meses de verão iam fazer uns trocos enquanto vigiavam fogos. Essas torres foram desativadas por razões difíceis de compreender mas o problema não foi o seu fim — mas a ausência de substitutos mais modernos e mais eficazes.
Hoje, sistemas de câmaras óticas e mesmo termográficas , com inteligência artificial incorporada, podem detetar focos de incêndio com precisão superior à visão humana. Estas câmaras distinguem, inclusive, fumo doméstico de incêndios reais e podem estimar a dimensão dos focos e indicam recursos operacionais aos bombeiros.
Tecnologias como:
- Câmaras térmicas com análise em tempo real
- Drones autónomos
- Sensores LIDAR
já são aplicadas em contextos agrícolas e florestais. Os próprios parques solares e eólicos poderiam ser pontos de ancoragem de drones, capazes de intervir em zonas suspeitas. Ou seja, as próprias câmaras poderiam ser móveis, deslocando-se ao foco de incêndio em minutos a fim de validar a ocorrência.
A dispersão dos projetos renováveis oferece uma chance única de criar uma verdadeira rede nacional de proteção civil.
Plantar árvores? Sim. Mas proteger as que existem é ainda melhor.
Nos processos de licenciamento de projetos, dá-se (e bem) prioridade ao impacto ambiental, ao corte de árvores e às medidas compensatórias. Mas essas medidas nem sempre são suficientes, e geram discussões públicas acesas.
Proponho uma abordagem mais ambiciosa: condicionar os novos parques renováveis à instalação obrigatória de equipamentos de deteção precoce de incêndios, integrados numa rede nacional inteligente, com participação pública e privada.
Os promotores não são mercenários, como por vezes se pinta. Esta ideia nasce do setor privado, mas só será possível com liderança pública, que garanta transparência, proteção de dados e operação coordenada. Por muito que queiram, os promotores dos projetos renováveis nada podem fazer sem a validação das entidades públicas.
Não faz sentido proteger um sobreiro da motosserra e ignorar os milhares que ardem todos os anos por falta de vigilância. Tudo está interligado. Tudo pode coexistir.
Já há precedentes desta vontade: a REN tem vindo a instalar sensores em postes de alta tensão com fins de monitorização. Uma presença mais densa dentro dos parques aumentaria significativamente a eficácia da cobertura territorial.
Uma proposta fácil e viável, com retorno garantido. Carece de vontade.
Este artigo não é uma crítica — é um desafio à ação colaborativa.
A Proteção Civil, os Bombeiros, a APA, o ICNF e os promotores renováveis têm meios para criar uma rede conjunta de prevenção de incêndios, com baixo custo e elevado impacto nacional.
Poderá até ser possível obter financiamento europeu para um projeto deste tipo, articulado centralmente pelo Estado.
Portugal investe entre 200 e 300 milhões de euros por ano no combate a incêndios. Os danos causados podem ultrapassar mil milhões num só ano.
Se os parques renováveis contribuírem para evitar apenas 5% da área ardida, o impacto económico e ecológico seria extraordinário. E sabemos que muitos mega-incêndios seriam evitáveis com resposta precoce — por isso, a redução poderia ser muito maior.
Porque a floresta não é apenas carbono — é cultura, riqueza e segurança coletiva.
Artigo publicado na CNN. Veja aqui