Já há americanos a pensar em casas a custo zero

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Imagine que quer comprar uma casa e que vai ao seu banco pedir um empréstimo. O seu banco responde-lhe: "Emprestamos-lhe dinheiro não para comprar a casa mas para comprar bitcoins. Compra as bitcoins, depois dá as bitcoins de penhor e nós emprestamos-lhe dinheiro para a casa ficando com as bitcoins como colateral do empréstimo".

Se a bitcoin continuar a subir 60% ao ano, como tem subido nos últimos cinco anos (cálculo anualizado), e se esse empréstimo for de 100 mil euros (eu sei que não dá para meia casa, mas é só para simplificar os cálculos), o resultado no final dos cinco anos seria o seguinte:

  1. Banco tem como garantia não a casa, mas as bitcoins, que ao fim de cinco anos valem 1.048.576 euros (cerca de um milhão de euros), muito mais do que o valor do empréstimo e da casa;
  2. Cliente, você, ao fim de cinco anos pode vender as bitcoins, pagar a casa e ainda lhe sobram mais de 900 mil euros
  3. ambos terão como ganho a (suposta) valorização da casa, assim o mercado imobiliário continue a crescer

Parece surreal, certo? Mas vamos ser ainda mais conservadores. E se o banco lhe disser:

“Use o dinheiro que seria necessário para a entrada (15%) para comprar bitcoins, e nós emprestamos a totalidade do valor da casa ficando apenas com as bitcoins como colateral”.

Nos mesmos pressupostos, o resultado ao fim de cinco anos seria o seguinte:

  1. Banco tem como garantia as bitcoins que valerão 157.286 euros
  2. Cliente ao fim de cinco anos poderá pagar a casa, e ainda lhe sobra a entrada.
  3. ambos terão como ganho a (suposta) valorização da casa, assim o mercado imobiliário continue a crescer

Parece inverosímil, mas este é um tema já muito discutido na comunidade bitcoin, porque nessa comunidade já se acredita que não faz sentido gastar dinheiro para comprar uma casa, quando se pode ter a casa de borla através de investimentos em bitcoin.

É arrojado pensar numa bitcoin a valorizar 60% ao ano, como tem acontecido nos últimos 5 anos, mas os que acreditam na dita não acreditam que a mesma possa não valorizar pelo menos 20% ao ano, quando comparada com uma moeda “fiat” (euro ou dólar), cuja emissão depende de políticos ou de bancos centrais nomeados por políticos. Deles também depende a desvalorização face a outros ativos, como ouro ou a bitcoin. Grande parte dos dólares atuais foram emitidos nos últimos cinco anos!

Façamos então as contas com os tais 20% de valorização da bitcoin e façamos as contas por 10 anos que é, ainda assim, menos de um terço do prazo máximo dos empréstimos atuais para os jovens:

no primeiro caso, para o tal empréstimo de 100 mil euros, as bitcoins valeriam 619 mil euros; e no segundo caso, o de apenas usar o sinal de 15% para comprar bitcoins, as bitcoins valeriam quase 93 mil euros, praticamente o valor da casa.

É por este tipo de lógica de bitcoin versus fiat que se anda a construir a tal economia baseada na bitcoin e na exploração das suas vantagens, por ser de quantidade finita, enquanto as moedas como euros e dólares terão sempre uma quantidade infinita dependente de governos, dívidas, juros, etc….

Por muito que não se goste e se tenha estigmatizado que a bitcoin, as ethereuns, etc…são moedas de gangsters dos tempos modernos, existe por detrás deste novo ecossistema quem tenha uma visão genuína de uma economia global mais justa. Claro que também andarão alguns gangsters no sistema, como sempre.

De cada vez que os nossos governos (ou, no nosso caso, o BCE, instituição da UE) emitem moeda, estão a criar mais oferta e como tal a atirar o valor do que temos no bolso para baixo. Depois compensam nos juros, gerem a inflação e tentam minimizar o impacto no nosso dia a dia. O sistema só funciona mais ou menos bem porque se alinha mais ou menos com o que se passa com as moedas de outras economias com forte impacto global. Se todos emitirem moeda e estabelecerem os mesmos juros, nenhuma se desvaloriza! É que a força de uma moeda mede-se por aquilo que pode comprar e não por aquilo que lhe deu origem.

No passado, o ouro dava origem à moeda, mas agora uma decisão política dos bancos centrais é suficiente. Emitir moeda e ajustar juros tem sido a fórmula para manter a inflação nos valores “estáveis” de 2%, que tem sido o alvo de quase todos os bancos centrais.

É por isso que a política monetária europeia acompanha a americana… para que ambos emitam moeda sem que um lado perca (muito) valor em relação ao outro.

Vou tentar explicar melhor:

o euro ganhou cerca de 5% face ao dólar desde 2000, ou seja, em 24 anos. Custa menos 5% aos europeus comprar bens americanos do que lhes custava em janeiro do ano 2000.

Por sua vez, o euro valorizou, por exemplo, cerca de 5% nos últimos 24 anos face à moeda chinesa, o Yuan.

A articulação entre os maiores importadores e exportadores do mundo (e as moedas mais transacionadas no mundo) tem sido quase total a fim de manterem todos o poder de compra relativamente constante enquanto aumentam a emissão das suas moedas de forma massiva. Lembre-se que uma moeda numa economia global só vale quando comparada com outras. Em bom rigor, o valor do bem está sempre relacionado com a taxa de renúncia: outro bem que estejamos prontos a abdicar para obter outro bem. Pode ser tempo, pode ser dinheiro, pode ser bitcoin.

O exemplo suíço

Mas comparemos agora com outra moeda bastante forte de um país bem mais pequeno e com uma política monetária separada do grupo dos “três grandes”: o franco suíço! O euro perdeu perto de 45% desde 2000. Também as outras duas moedas levaram uma forte lambada durante este período. Ou seja, os suíços estão bem mais ricos quando se comparam com todos os outros, mas eventualmente igualmente ricos quando comparados entre si. É como a lei do movimento em física, depende sempre do ponto de referência.

Ou seja, quem tivesse comprado francos suíços e dado os mesmos como garantia para um empréstimo na sua casa em euros, teria beneficiado da forte valorização do franco, mesmo apesar do seu carácter teoricamente infinito típico das moedas fiat. O resultado final seria perto dos exemplos com a bitcoin apresentados no início deste artigo.

Os mais atentos às bolsas sabem que alguém já tentou aplicar este modelo de “jogar” com as moedas. Infelizmente foi feito ao contrário e infelizmente correu mal! Muito mal!

Os bancos polacos conseguiram a proeza de instruir os seus clientes a “brincar” com o franco suiço: faziam empréstimos em francos suíços para os clientes beneficiarem de taxas de juro mais favoráveis, mas os pobres dos clientes acabaram por cair numa enorme ratoeira e muitos deles acabaram por não conseguir pagar os seus empréstimos.

Tiveram de pagar os habituais juros (ainda que mais baixos devido à ligação ao franco suíço) e as amortizações, e viram-se também obrigados a pagar a valorização de uma moeda forte como o franco suíço. Os clientes não prestaram atenção à história, e à histórica valorização do franco suíço face ao zlotty / euro e quase todas as moedas!

Quem investiu no Millennium BCP (que tem maioria de capital no Bank Millennium na Polónia) quando as suas ações estavam mais baratas do que um papo-seco sabe bem do que falo.

Portanto, o que se está a construir com a bitcoin é um novo sistema alicerçado numa nova economia, que trará prós e contras e que naturalmente comporta riscos. Ainda não são os bancos que conhecemos a explorar estas soluções, mas sim aqueles que estão a tentar desenhar os novos bancos americanos, fortemente ligados às criptos. Claro que, no que toca a qualquer investimento, e em jeito de “disclaimer”, os ganhos passados não garantem obviamente ganhos futuros, mas os bitcoiners estão a montar modelos e empresas que usem a valia da bitcoin como ativo finito para retirar vantagem da sua relação com as outras moedas infinitas.

A resiliência que uma moeda como a bitcoin pode ter no sistema financeiro é algo que não pode ser desprezado de todo, e que nos obriga a estar atentos ao que se passa para não corrermos o risco de ficar muito para trás.

Não estou a falar de futurologia a longo prazo… estou a falar do que se está a cozinhar para os próximos cinco anos, assim a bitcoin e afilhadas se mantenham na trajetória em que se encontram. Os bancos que conhecemos continuam a resistir e, talvez por isso, não haja ainda tanta gente a cozinhar poupanças em bitcoin e afins. E, por um lado, talvez seja melhor assim, até que seja inequivocamente clara a adoção generalizada da bitcoin. O problema é que, quando e se for, generalizada, já parte da  oportunidade se perdeu.

Urge que os governos estejam atentos a estas evoluções. Os acionistas da Microsoft, Amazon e outros já têm começado a pressionar as suas administrações para uma profunda discussão acerca da adoção da bitcoin. Nestas coisas já se sabe que os “first movers” assumem os riscos, mas arriscam mais proveitos.

Artigo de opinião publicado na CNN, veja aqui

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Bernardo Mota Veiga

Bernardo Mota veigaStrategicist

*língua original deste artigo: Português

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