No protocolo sobre a Aithropology que tenho estado a desenvolver sobre a humanização da inteligência artificial, defini como grande diferença entre os humanos e as máquinas a capacidade do ser humano de ser imprevisível. Contrariamente aos computadores, cuja “imprevisibilidade” é imposta por um algoritmo e, como tal, matematicamente estatisticamente previsível, a nossa imprevisibilidade como seres origina a imprevisibilidade como corolário da definição de vida. A imprevisibilidade é condição necessária para nos sentirmos vivos. Fui educado desde sempre com a premissa de que tenho que estar preparado para qualquer imprevisto. Isto quer dizer que fui instruído a ter um pé-de-meia para o caso de aparecer algum imprevisto.
Afinal, o que é um fundo de emergência?
Todos teremos mais ou menos a ideia de que deveremos ter, se possível, um pé-de-meia para imprevistos. Se a vida por alguma razão der uma cambalhota com que não estávamos a contar, é prudente ter um fundo de maneio destinado a essas oscilações disruptivas e até naturais da vida.
Até aqui está tudo bem, mas o que é, afinal, o pé-de-meia de emergência? Como se calcula? O que é uma emergência? Que lei devemos aplicar ao uso do fundo para emergências? Precisar desesperadamente de férias é uma emergência, ou temos que perder os dois rins para estar numa situação real de emergência?
Em economia, chama-se a este fundo um fundo de contingências. É um fundo que se destina a cobrir desvios num determinado orçamento de um determinado projeto ou empresa. Quando uma construtora constrói uma ponte, a obra é orçamentada item a item e pode acontecer que, por alguma razão de mercado ou técnica, o custo com o betão utilizado tenha disparado 20%, o ferro mais 15% – até pode ser, por exemplo, por causa de novas tarifas, fazendo com que o projeto fique mais caro do que o orçamento. A contingência é uma almofada orçamental que permite acomodar alterações de custo sem que tal condicione a margem do projeto. Ou seja, se as contingências não forem usadas, a margem aumenta, mas não diminui se forem usadas porque já estavam contempladas como previsíveis. Este valor não é qualquer. É uma percentagem do valor estimado da obra, é resultante do histórico do setor e da empresa na utilização das mesmas e é, inclusive, um valor contabilisticamente auditável. Não pode ser o que nos apetecer: tem que fazer sentido económico e contabilístico.
OK, então o fundo de emergência que sempre me disseram para ter é, na gíria da gestão, um fundo de contingências que deve ser proporcional a alguma coisa… mas nunca ninguém me explicou a fórmula.
Tal como expliquei no segundo artigo desta série, onde discuti como distinguir entre custos fixos e variáveis, poderíamos dizer que, a bem da prudência, o fundo de emergência deveria ser calculado em cima do meu orçamento, nomeadamente com base nos custos fixos. Se o meu orçamento são 2.000 euros por mês e se, desses, 1.400 euros são custos fixos, então a minha contingência deve ser tal que me permita fazer face a alterações nesses custos fixos. Se a renda de casa aumentar 20% e o meu salário não aumentar proporcionalmente, então a contingência servirá para cobrir esse aumento pelo período de tempo necessário até reduzir novamente esse custo – trocar de casa, por exemplo, ou aumentar a receita. Esta seria a lógica do fundo de emergência, mas não foi essa a lógica que me incutiram. A lógica que me incutiram não andava longe de ter de me preparar para um terramoto, em vez de me preparar para a vida. Na realidade, havia uma grande mistura entre o que seria um fundo de emergência e um fundo de poupança e, honestamente, acho que na altura eram duas palavras para o mesmo fim.
Fundo de emergência que nunca se usa
Ora, se passo a vida a poupar para um fundo de emergência que é quase uma espécie de PPR que só posso usar aos 67 anos, então que sentido faz estar a abdicar dos sonhos da vida até a um momento em que muitos deles já não me interessa sequer realizar? Não estou com isto a dizer que não devemos estar prevenidos, mas devemos ter uma noção do que é essa mesma precaução até porque ter um “bolo” numa conta à espera de uma emergência e não lhe aplicar rentabilidade, é mais uma forma de perder dinheiro do que de ganhar descanso. Dinheiro que não circula não rende. Se o fundo de emergência se destinar única e exclusivamente a dar-nos segurança, então fazemos seguros de saúde, de perda de emprego, etc… e deixamos de necessitar desse fundo-ou podemos reduzi-lo drasticamente- usando o dinheiro para viver, ou para algo mais.
Dinheiro que não circula não rende”.
Fundo de emergência passa a ser Fundo de Liberdade
Ao longo de todos os meus anos, a feliz verdade é que nunca precisei de utilizar o meu fundo de emergência para mim. Utilizei-o sempre para ajudar outros que se viram numa situação de emergência acima do que tinham no seu próprio fundo de emergência. Isto é, no mínimo, irónico. É por esta razão que há muitos anos transformei o meu fundo de emergência no meu Fundo de Liberdade. Ou seja, em vez de aguardar que alguma catástrofe me aconteça, ou aos meus mais próximos, passei a encarar o fundo como um fundo que está ali para me ajudar a agarrar oportunidades que de outra maneira não me seria possível agarrar.
O truque é então pensar sob a forma de liquidez. Ou seja, o Fundo de Liberdade passa a ser um fundo que, se por acaso remoto a emergência ocorrer, o importante é garantir que esse fundo pode ser convertido em liquidez com relativa rapidez. Podemos estar a falar de compra de ações, ou de imóveis que possam facilmente ser hipotecados ou vendidos, mas não é só isso. O Fundo de Liberdade é isso mesmo que o nome indica: um fundo que nos permita explorar as oportunidades que a vida nos dá. Imagine o que é ter dinheiro num fundo de emergência mas depois não ter dinheiro para fazer um curso que me permita ir para um emprego que goste mais ou mesmo crescer na carreira e aumentar as minhas receitas. Mas uma emergência pode também ser ir de férias para o Tibete evitando um burnout que começa a dar sinais.
A liquidez mede-se com a velocidade com que conseguimos transformar os ativos tangíveis e intangíveis em dinheiro para fazer face a imprevistos e, seja investindo em ações ou seja investindo em nós próprios, ambos são naturalmente mecanismos de aumento de liquidez.
O nosso melhor ativo somos nós próprios
Também já o escrevi aqui e volto e voltarei a escrever. O nosso maior ativo somos nós próprios e a nossa maior segurança está no que somos e no que valemos. Investir na nossa carreira, na nossa formação, no nosso bem-estar e na nossa harmonia é o investimento mais seguro que podemos fazer e também aquele que representa o nosso melhor fundo de emergência. Converter o que somos em dinheiro nem sempre é fácil mas, de uma forma ou de outra é o nosso valor que define o tamanho das oportunidades que nos chegarão. Ninguém está sozinho no mundo, e o que somos definirá aquilo que consigamos ter.
Uma pessoa credível e confiável conseguirá mais facilmente apoio financeiro para uma “intempérie” seja ela qual for. Uma pessoa trabalhadora, competente, respeitosa e respeitável será sempre reconhecida como tal e terá sempre as oportunidades perto de si. Uma pessoa altamente qualificada terá sempre os holofotes maiores apontados a si. O nosso fundo de emergência é, portanto, relativo porque não saberemos nunca o que tal representará em valor. Se, por outro lado, formos investindo em nós (em vez de comprar bens fúteis) estaremos ao mesmo tempo a aumentar a nossa segurança e o potencial para melhores oportunidades nos baterem à porta. Esse é o que chamo de fundo de Liberdade!
Dicas para criar um Fundo de Liberdade
O conceito de Fundo de Liberdade pode parecer abstrato, mas a sua construção baseia-se em passos práticos.
- Começe pela base. Antes de ter um Fundo de Liberdade, assegure-se de que tem um fundo de emergência clássico. Idealmente, ele deve cobrir as despesas fixas por 3 a 6 meses. Esta base é o “seguro” e dará a paz de espírito necessária para começar a pensar no futuro.
- Definia o “retorno de liberdade”. Em vez de pensar em “emergências”, questione-se: que tipo de oportunidade quero agarrar? Uma transição de carreira? Um ano sabático? Um curso de formação? Definir o que a liberdade significa é o primeiro passo para poupar com propósito o não gastar sem ele.
- Garanta a liquidez. Para um Fundo de Liberdade ser eficaz, o dinheiro tem de estar disponível. Evite enterrá-lo em ativos de difícil liquidez (como imóveis difíceis de vender ou hipotecar). Pense em investimentos de baixo risco e rápida conversão, como Certificados de Aforro, Ações, ETF.
- Invista em si. Lembre-se de que o melhor “retorno” garantido é o investimento em nós próprios. Use parte do fundo para formações, networking ou experiências que aumentem o valor pessoal e profissional. O crescimento é o maior ativo que se pode ter e a melhor forma de o fazer ser exponencial é ir acrescentando saltos de valor.
Pense diferente, conquiste a sua liberdade
A verdadeira segurança financeira não está apenas em ter um fundo de emergência para o caso de algo correr mal. A maior segurança está em investirmos em nós próprios, na nossa capacidade de adaptação e na nossa resiliência.
O Fundo de Liberdade é a materialização desta mentalidade. É o dinheiro que nos permite dizer “sim” a novas oportunidades e “não” a situações que nos aprisionam. É a ponte entre a vida que temos e a vida que queremos.
A lição final é que a literacia financeira é mais sobre viver de forma intencional do que sobre poupar por medo. É sobre sermos estrategas da nossa própria vida, transformando a imprevisibilidade em liberdade e o dinheiro em bem-estar.
Artigo publicado na CNN. Veja aqui
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