Portugal não vive uma crise de imigração, vive uma crise demográfica

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O maior erro que se comete é tratar a questão como se fosse só sobre imigração — quando, na verdade, o país está a atravessar um choque demográfico. Não é novidade para quem conhece a história recente de Portugal que a crise que vivemos não tem só a ver com os estrangeiros que aqui chegam, mas com o crescimento abrupto da população num curto período de tempo. Para perceber isto, é preciso olhar para trás — para os retornados das ex-colónias nos anos 70 — e para o impacto que tiveram.

Os retornados das ex-colónias: um choque populacional sem precedentes

Entre 1974 e 1976, cerca de 800 mil portugueses regressaram ao país — quase 10% da população nacional da época (INE). Este aumento súbito e maciço fez o país enfrentar um crescimento populacional que não tinha paralelo e provocou um choque enorme nas infraestruturas, serviços e na sociedade.

Importa dizer que muitos desses retornados eram altamente qualificados, com estudos avançados e experiências profissionais valiosas — técnicos, professores, médicos, engenheiros. Esse capital humano foi essencial para a reconstrução do país, algo que contrasta com a composição mais vulnerável dos imigrantes atuais, que em muitos casos chegam com menos oportunidades educativas e económicas.

O impacto em quatro pilares essenciais

Habitação

Os preços das casas aumentaram significativamente em 1975 e 1976, sobretudo em Lisboa, Porto, Setúbal e Algarve — zonas preferidas pelos retornados. Em Lisboa, os preços subiram entre 20% e 35%, já ajustados pela inflação, que atingiu cerca de 25% naquele período (Banco de Portugal, Relatório de Inflação 1975-1976). As rendas aumentaram estimadamente entre 40% e 60%.

Seja pela vaga de imigrantes entre 2022 e 2024, seja pela dos retornados em 1974-1976, o aumento de 10% da população residente gerou um impacto semelhante. A nacionalidade parece ter pouca influência — mais população significa maior pressão imobiliária e preços mais altos. Em bairros densos, a procura de casas e quartos fez crescer um mercado informal e muitas vezes precário, onde os menos favorecidos eram os que mais sofriam.

Saúde

A chegada dos retornados gerou um aumento brutal e inesperado da procura em todos os níveis do sistema de saúde: cuidados primários, urgências hospitalares e serviços de medicina infantil. Os hospitais em 1976 estavam sobrelotados, incapazes de absorver a procura.

Paralelamente, muitos retornados traziam doenças tropicais não tratadas — como malária, hepatite, desnutrição — e havia necessidade de cuidar dos militares feridos ou traumatizados pela guerra (História do SNS, Ministério da Saúde).

Naquela época, não existia o Serviço Nacional de Saúde (SNS), criado em 1979 como resposta a essa pressão demográfica que evidenciou desigualdades no acesso à saúde.

Olhar para a pressão atual no SNS sem considerar o impacto demográfico é demagógico. Um sistema não é construído para suportar um pico súbito de 10% sem falhas. Por isso, a tensão que vivemos hoje tem origem no envelhecimento populacional e na falta de investimentos inovadores, não na nacionalidade dos utilizadores.

Segurança e criminalidade

Muitos retornados vieram sem emprego, sem casa e sem rede de apoio — condições similares às dos imigrantes recentes. Isso gerou uma perceção generalizada de aumento da criminalidade em zonas urbanas como Lisboa, Setúbal e Porto, sobretudo em bairros de barracas, ocupações ilegais, áreas comerciais e transportes públicos (Arquivos de jornais da época, Diário de Notícias, O Século).

Entre 1974 e 1977 houve, de facto, um aumento dos furtos, assaltos e criminalidade associada à pobreza — roubos, arrombamentos e mercado negro. A sociedade estereotipou os retornados, associando-os injustamente à delinquência.

Note-se que a mudança política de 1974 pode ter influenciado um aumento da criminalidade pela instabilidade das forças de segurança, uma dinâmica comum em períodos de transição política.

Portanto, o que vemos hoje com os imigrantes não é diferente do que ocorreu com os retornados, confirmando que a demografia, e não a nacionalidade, é o fator mais relevante.

Ensino

Estima-se que entre 80 mil e 100 mil crianças retornadas ingressaram nas escolas portuguesas, muitas em meio ano escolar, vindas de programas educativos diferentes. Isso causou sobrelotação nas escolas das grandes cidades, levando à criação de turnos duplos e escassez de professores (Ministério da Educação, Relatório 1975).

A pressão sobre o ensino nos últimos anos é similar àquela da descolonização. As escolas tornaram-se pontos de tensão social, com filhos dos retornados sendo marginalizados e discriminados — chamados “atrasados” ou “agressivos”.

O aumento estimado de 80 mil crianças imigrantes nas escolas nos últimos 4 anos mostra que a situação atual replica em muitos aspetos a vivida no passado.

A realidade de hoje

O que estamos a viver agora, com as novas vagas migratórias, é semelhante em termos de impacto quantitativo — o aumento da população volta a rondar os 10% em algumas regiões — mas diferentemente qualitativo. Os imigrantes atuais, em muitos casos, enfrentam desafios ainda maiores: falta de qualificação, menos apoio social e económico, dificuldade no acesso a direitos básicos.

Não é uma questão de “bons” ou “maus” imigrantes — é a constatação dura das desigualdades que se perpetuam mas sobretudo ignorar o facto da velocidade com que a população tem aumentado, não deixando tempo nem espaços necessários para uma correcta acomodação. Aconteceu em 1975 e acontece agora.

O erro fatal na narrativa pública

Persistir em reduzir este fenómeno a uma “crise de imigração” é um erro grave. A raiz do problema é demográfica e estrutural — o crescimento rápido e não planeado da população exige uma resposta urgente em habitação, saúde, segurança e educação.

O discurso público, político e mediático tem-se concentrado demais em quem chega, e pouco em como garantir que Portugal consiga absorver, integrar e beneficiar dessas pessoas.

O paralelismo com o que aconteceu com o regresso dos retornados é brutal e quase a regra e esquadro. Já vivemos o que estamos a viver mas termimamos em não querer ver da forma como tem que ser visto.

A nacionalidade dos imigrantes poderia ser diferente, mas o impacto demográfico deste aumento súbito de população seria o mesmo em muitas áreas sobre as quais nos queixamos. Um milhão de suecos criariam o mesmo impacto, ou um milhão de luso descendentes de França a regressar à terra.

Em bom rigor, ainda só estamos a viver o impacto demográfico, o da imigração ainda está por vir.

Olhar para o passado para construir o futuro

Portugal conseguiu superar um dos maiores desafios demográficos do século XX ao integrar os retornados. De uma situação dramática emergiu um capital humano fundamental para o desenvolvimento nacional — um exemplo que devia ser inspiração para hoje.

É fundamental que o país aprenda com essa história, percebendo que a verdadeira crise não está na imigração, mas na incapacidade de resposta às necessidades demográficas e sociais.

Portugal tem potencial para transformar este desafio numa oportunidade de crescimento e renovação — desde que haja coragem para agir com políticas inclusivas, que valorizem o talento e a diversidade de quem escolhe viver aqui.

A pergunta que fica é: quando vamos deixar de olhar para a imigração como problema e começar a vê-la como parte da solução demográfica?

Artigo publicado na CNN Portugal: Veja aqui

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Bernardo Mota Veiga

Bernardo Mota veigaStrategicist

*língua original deste artigo: Português

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