A inteligência artificial não é ficção… é realidade. Está a atuar em imensas áreas sem que nos demos conta, mas está também pronta para atuar em imensas novas áreas que precisam de ser desenvolvidas.
Já temos empresas cujo apoio ao cliente é meramente feito por IA sem que nos demos conta. Pensamos que estamos a falar com um funcionário devoto, atencioso e competente, mas muitas vezes (qualquer dia será a maior parte das vezes) não é um senhor ou uma senhora que estão do outro lado da janelinha do “precisa de ajuda?”. É um computador alimentado a IA e devidamente treinado.
E se, tal como os chatbots de apoio ao cliente, pudéssemos ter chatbots “médicos assistentes digitais”?
É uma pergunta arrojada, mas parece-me legítima: será que num país onde fazem falta médicos de família que demoram 11 anos a formar (6 anos no curso de medicina, um ano de formação geral e quatro anos de formação específica) é melhor formar mais médicos ou criar e implementar mais ferramentas de inteligência artificial (médicos assistentes virtuais), que demoram um par de anos a “entrar no ativo” e a apoiar os médicos que já existem?
Uma pesquisa da BMJ Health and Care Informatics revelou que 20% dos médicos de medicina geral em Inglaterra utilizam ou utilizaram ferramentas de inteligência artificial no desempenho das suas funções. Seja via chatbots para responderem a utentes, seja no apoio na elaboração de fichas clínicas ou relatórios, seja mesmo para apoio no diagnóstico efetuado.
São já 20% mas em breve poderão ser 100%. Muito em breve.
Os médicos de família são médicos especiais com uma função mista de medicina curativa e preventiva. É suposto o médico de família fazer um acompanhamento alargado ao longo da vida dos utentes, atuando também como pivot no reencaminhamento do utente para as mais diversas especialidades.
Estes médicos especiais têm, portanto, uma função primordial na sociedade. Conhecem os utentes e até mesmo as famílias destes como ninguém. Antecipam os problemas dos antes que seja tarde demais ou custoso demais.
Podemos ter muitas questões quanto à IA, mas num país de 10 milhões de habitantes onde 1,7 milhões não têm médico de família, talvez não faça muito sentido tentar resolver um problema presente com soluções do passado, tendo nós acesso às ferramentas do futuro: a Inteligência Artificial.
Claro que não estou a defender o fim dos médicos de família, mas arrisco tudo dizendo que não é possível que um médico de família seja verdadeiramente um médico de família quando tem mais de 2 000 pacientes registados e de quem cuidar. Pior ainda é o facto de, porque os serviços estão sobrecarregados e estes médicos também, muitos utentes se dividem entre médico de família, hospitais públicos, hospitais privados, consultórios privados, etc… e portanto o médico de família acaba por não exercer a medicina que aprendeu, simplesmente porque lhe é impossível ter o trabalho de continuidade e acompanhamento que a medicina de cuidados primários exige. Ficam relatórios na clínica A, ou na clínica B, ou no Hospital C e o médico de família raramente tem o real histórico necessário para fazer um acompanhamento eficaz. Isto para não falar na repetição de exames e relatórios que acaba por solicitar e que tanto custam ao Estado.
Se me tocasse decidir, tentaria avançar tão rápido quanto possível com a implementação de “assistentes médicos virtuais” nos nossos consultórios dos médicos de família. Começava a apoiar, com esta ferramenta poderosíssima, os médicos sobrecarregados a fim de gerar a troca de informação da IA para o médico e do médico para a IA. Um modelo de treino de IA.
Os modelos de IA treinam-se com bons “professores”. É importante começar a transmitir para a IA a informação e o conhecimento dos nossos médicos mais experientes, sob pena destes se reformarem e de a IA não ter a oportunidade de agregar o seu conhecimento. Reformam-se por ano cerca de 300 a 400 médicos de família e, com esta reforma, desaparecem quase 40 anos de experiência que já não vai integrar os modelos de inteligência artificial.
Pergunto-me se faz sentido fazer um esforço hediondo de formação “a metro”, ignorando uma realidade que já está presente. Resolver problemas passados com soluções passadas leva normalmente ao mesmo problema. Pior, a resolução pela via “antiga” demora 11 anos.
As oportunidades
O treino de Médicos Assistentes Digitais não representa uma ameaça aos médicos, mas três enormes oportunidades.
- A primeira é a de poderem perpetuar através da Inteligência Artificial os seus conhecimentos. Deixar a história e deixar a herança da experiência, da prática e das dezenas de milhares de pacientes acompanhados ao longo de uma vida.
- A segunda é a possibilidade desses médicos poderem atender, juntamente com os seus “Assistentes Digitais”, utentes em qualquer parte do país e do mundo. Já pensou que alguém que emigre ou que mude de residência, por exemplo, pode continuar a ser acompanhado pelo médico de família?
- A terceira é a monetização deste conhecimento, a aqui vou explicar um pouco melhor:
Não é notícia que os médicos portugueses estão entre os melhores do mundo e até me arrisco a dizer que serão os melhores. Aliás, os nossos médicos têm lugar quase direto em qualquer hospital do mundo e isso não deve ser porque são maus.
As nossas fraquezas são as nossas oportunidades. Temos um país pequeno e relativamente pobre, mas que decidiu “oferecer” a cada cidadão o acesso tendencialmente gratuito à medicina. Os nossos médicos têm todos os recursos quando estão na fase de aprendizagem e depois acabam por se ver obrigados a exercer com menos recursos. Isso fornece resiliência. A necessidade aguça o engenho.
A juntar a esta medicina excelente, temos também algo que não valorizamos. Um sistema de saúde que está extremamente digitalizado. Muitos talvez não saibam mas o nosso sistema de saúde comporta um esforço enorme de digitalização que tem vindo a ser feito há mais de 30 anos. Somos muito avançados nisso e temos empresas de software portuguesas a exportar os seus sistemas de gestão hospitalar, etc.
Ou seja: temos os melhores médicos do mundo, temos uma base de dados gigante, temos um sistema de gestão muito avançado, temos das melhores universidades de Medicina… portanto quem melhor do que Portugal para se lançar no desenvolvimento de modelos IA para medicina? A IBM fez o Watson, nós podemos bem fazer o Egas!
Não se pense que os modelos de IA são gratuitos. Nem o ChatGPT será gratuito, nem os modelos específicos que cada um desenvolver serão gratuitos. Treinar um modelo de IA requer basicamente quatro coisas: software, hardware, energia e conhecimento. Os nossos médicos podem efetivamente receber os dividendos desta partilha do conhecimento. Podem receber “royalties” ou “tokens” ou ”bitcoins” de cada vez que a IA utilizar o seu conhecimento em qualquer parte do mundo. Com tamanho modelo poderemos ter os médicos mais bem pagos do planeta. É isso a IA!
Temos as condições e temos a necessidade! Em vez de nos focarmos em abrir universidades “de urgência” para colmatar a falta de médicos, podemos tentar encontrar uma solução balanceada entre médicos e assistentes digitais. Este projeto conjunto de colocar todos nos nossos cérebros a contribuir para um cérebro único não é apenas bom para o utente. É bom para os médicos, é bom para a economia do país, é bom para economizar e é bom para exportar.
Como sempre disse, a IA não é uma ameaça, mas uma oportunidade que não pode andar somente nos miniprojetos desta ou daquela empresa. O serviço público pode olhar bem mais longe e Portugal tem em vários sectores capacidade para fazer a diferença , obtendo a escala global cuja nossa dimensão não nos permite.
O conhecimento é e será o que sempre foi… Infinito!
Artigo de opinião publicado na CNN, veja aqui